mort mot juste

julho 11, 2007

Dr. Santos Lima e Madame Rita

Foi na época em que eu tinha por amante uma ruivinha tagarela com um belo par de coxas que se chamava... talvez se chamasse... Marina, devia ser Marina ou algum outro nome desses comuns começados com M.
Da conversa com um velho amigo saí com o endereço do trabalho de Ritinha escrito a tinta azul atrás de um cartão, Godot&Andrade adv. associados, criminalística, telefone fax endereço letras prateadas como esse Luís Carlos continua um baita metido a besta mesmo depois de velho. Não que já não fosse previsível.
Estacionei o carro na frente do prédio, logo identifiquei a placa e adentrei, não sem sentir um leve tremor nas mãos. Eu entrava na sala de espera do escritório de Ritinha, que como eu havia cursado Direito há quinze anos mas que há muito tempo havia abandonado a profissão, segundo relatos. Me sentei numa almofada da cor de carmim no chão de tábuas sem verniz e foi então que me lembrei de ter olhos acima do nariz e de que estes me serviam, se não perfeitamente, ao menos razoavelmente para observar o curioso arredor. As secretárias sentadas atrás de mesas onde jaziam desligados dois computadores magros trajavam compridos robes de seda alaranjada, traziam aos cabelos tiaras feitas de contas douradas e me sorriam, sem que me fizessem qualquer pergunta. Das paredes pintadas de amarelo-claro escorriam imagens de deuses e deusas de todos os tipos, tamanhos e origens. O relógio de parede era um enorme Olho de Hórus negro com ponteiros, de um pequeno tablado de granito me encarava um buda radiante em sua posição de lótus enfadada. Sorri com escárnio, o sorriso me doeu, ou foi o escárnio. No momento me pareceu que o buda me sorriu de volta com a mesma zombaria que eu havia sorrido para ele. Zombaria mística.
Constatei com espanto que os telefones das secretárias não possuíam fios que os ligassem a tomada nenhuma, que o relógio estava parado, que tudo aquilo me parecia uma piada de mau gosto. Mas eu precisava de Ritinha, ou tinha me convencido do mesmo, e agora esperaria até que

A porta do escritório se abriu. Dele saíram os pés de Ritinha metidos em sandálias roxas feitas de uma miríade de tiras de couro de vaca, seu corpo em um robe justo e suntuoso do mesmo tom com estampas de triângulos coloridos, seu pescoço e seu rosto, que envelheciam, ornados por jóias exageradas, seus olhos (sempre foram aqueles os olhos de uma cigana) maquiados, frios, enfunados de poder e de fausto sobrenatural. Convidou-me a entrar com um movimento da mão: suas unhas eram compridas, negras, reluzentes. Ritinha de calça jeans e livros sobraçados, amante das riquezas e dos rapazes, Ritinha universitária: fruto da minha imaginação.
Ela espalhava pétalas secas pelos quatro cantos da salinha. Mandou que eu me sentasse num estreito colchonete, andou ao meu redor meditativa, por fim sentou-se no chão à minha frente.
-Para que tenha vindo inquietar a vitae sagrada do meu escritório com a negatividade cética que só encontrei em você em toda a minha vida... deve ser algo grande, Tiago.
Estava claro que não era um encontro social. Tanto melhor, a pergunta "O que você tem feito nos últimos quinze anos?" parecia se responder sozinha. Desse meu pensamento, ri em silêncio.
-O que você tem feito nos últimos quinze anos?, Ritinha me perguntou. Estremeci.
Contei que tentava conseguir a publicação de um livro, que para ganhar a vida continuava advogado, que tinha um cãozinho novo que havia adquirido como capricho, para me consolar da morte de uma irmã. Mas ela queria saber o motivo da minha vinda, o motivo exato, e queria me ajudar, ela disse, e andava preocupadíssima comigo por causa de um sonho perturbador que vinha tendo a meu respeito. Perguntei como era, Ritinha desconversou. Queria saber da minha aflição.
-Não sei escrever sobre amor, desabafei.
Sua expressão impassível se retorceu nos lábios e queixo, e a mística permaneceu calada por cerca de cinco minutos. Então levantou-se e convidou-me a entrar no cômodo adjacente, onde à pobre luz de velas aromáticas eu pude distinguir uma maca de massagista, um sino de ventos pendurado em um aro circular todo trançado por dentro como uma teia de aranha.
Uma sessão de massagem com direito a declamação de mantras depois, eu já deixava que Ritinha executasse as bruxices que achasse necessário. Não reclamava, mas já não esperava resultado algum além de uma história hilariante para contar a Marina, depois.
Engoli poções com gosto de chá, chás com gosto de poção, estive em posição de arbusto, depois de árvore, depois de arranha-céu, inalei todos os vapores e óleos que me eram empurrados, toquei uma bola de cristal, depois bolas de gude, sentei sob um triângulo enquanto Ritinha observava como se tomasse notas mentais. Por fim me disse que estava curado de meu bloqueio, agradeci, discutimos trivialidades durante os breves minutos em que eu assinava o cheque e recolocava os sapatos e a gravata. Saí do escritório de Ritinha para nunca mais voltar.

Durante semanas eu persegui rabos-de-saia diversos, tive sonhos eróticos com toda a espécie de criaturas, reais ou míticas, exauri as energias de Marina todas as noites depois do trabalho.
Nunca pude escrever sequer uma frase sobre o amor.

maria 8:14 PM 3 vociferando estavam

julho 06, 2007

uma memória

Me acomete de tempos em tempos um fenômeno intrigante: lembro-me de tudo. Todos os detalhes de um determinado acontecimento, de um momento no passado, se descortinam em rendas lavradas com precisão para o tédio dos meus olhos. Às vezes também me ocorre lembrar o futuro, e isso é coisa difícil, também não vem ao caso. Pensei relatar uma memória antes que se junte a outras tantas no ensolarado terreno estúpido das lembranças perdidas. Aqui trato de uns certos quinze minutos.
Ocorreram depois de um passeio longo e dolorido. Teve fim num ancoradouro vazio, as pernas se me dobravam e eu gemia e gritava e era um entardecer tão patético que fui obrigada a rir da minha própria desgraça, depois. Em seguida a volta pra casa, que me foge ao completo da mente, então as escadas, a porta do quarto de dormir, e finalmente os meus quinze minutos.
Eu tinha as pernas balançando sem tocar o chão e os olhos no piso envernizado entre as meias úmidas. Então descobri que esticando a perna esquerda poderia alcançar a gaveta, e abri-la com o pé, e fecha-la,- cheguei a pensar em talvez escrever um lembrete sobre arrumá-la em breve- e abri-la, e fecha-la indefinidamente. Dos pensamentos que me vieram listo aqui o débil entusiasmo a respeito de livros de recente aquisição, uma preocupação passageira com a saúde do animal de estimação (que no momento latia), e a silenciosa e nauseante ponderação acerca de uma crise existencial que me acometia em anos de juventude mais crítica. Porque a juventude é quase que uma condição médica, ouvi hoje mesmo no telejornal; foram as palavras de um desses metempsicólogos que andam em voga desde o começo do ano.
À gaveta. Abri-a e tornei a fechá-la tantas vezes que o som da corrediça e da madeira batendo, tão constante, tão livre de expressão e de variações no tom, teria enlouquecido o leitor em menos de quatorze minutos. Mas eu não ouvia mais o som. E foi assim que fiquei surda.

maria 9:06 PM 2 vociferando estavam



ao rés da fala