mort mot juste

janeiro 24, 2008

a solidão grená e o doce concreto

eram dois, e cada um cantava em um de seus ouvidos. a tristeza só existiria se cortassem novamente as flores de rua. aquelas sem jardim, que eram só flores mesmo, sem planos ou objetivos. aquela noite estava longa, talvez de manhã ela acabasse não conseguindo acordar. quando a noite era longa ela fingia que o relógio na parede estava quebrado ou que não existia.
a sua própria existência, por outro lado, talvez se resumisse a comer doce de abóbora e inventar. tinha aprendido também que imaginar era uma palavra útil, mas nem por isso menos feia, e pequena. inventar era mais verdadeiro, e maior.
ela estava sozinha. o doce também estava, afinal. e morreria antes dela. sentiu um pouco de culpa, logo dissipada com o gosto da abóbora com açúcar na língua. lembrou de seu aniversário. lembrou também de uns dias antes, quando sonhara que um gato arranhava a janela do apartamento (era o quinto andar). o gato gritava e se contorcia de medo, afinal tinha um vulcão lá embaixo, em erupção. ela não podia abrir a janela e salvar o gato por mais que gostasse dele.
poderia muito bem ser novembro. mas ela usava um gorro azul e era dezembro. por esse mesmo motivo é que não era novembro, pensou. as coisas podiam ser fáceis demais às vezes, no mundo e no seu quarto.
desenhou um vulcão numa folha sulfite branca com um amassado na ponta direita(o amassado era embaixo e atrapalhou a grama, de cor verde-água). o monte era azul, a lava amarela, a fumaça não tinha cor, e o céu era de um vermelho esquisito, apenas usado porque o vermelho de verdade tinha sumido. ouviu as vozes novamente, cada uma em um ouvido. uma feminina, outra masculina. não eram familiares. os dois cantavam leve e longo e faziam bem mal calmo. o céu do desenho parecia suco de pitanga, característica que ela desaprovava em qualquer céu, real, de desenho, ou de foto.
estar sozinha no quarto de móveis brancos e janela com arranhões de gato será que era isso? a solidão. os lápis de cor mudos e diminuindo muito rápido. o gato prestes a morrer, no sonho.
porém, ela sabia que a solidão era exatamente como a tristeza. e só incomodava se. dependia da coisa e do dia. também da estação. por exemplo, era dezembro, estava frio, logo era inverno: a noite longa poderia se tornar horrível se alguém entrasse sem bater e falasse alto sobre algo importante. se a pessoa dissesse que o assunto era importante, tanto pior.
mas até isso era mentira se ela quisesse. ela gostava de mentir mas só em silêncio. mentir para os outros, isso era um problema (a não ser se a mentira fosse absolutamente necessária para o bem estar de alguém).
no final ela sempre sabia que era pequena, pequena, ridiculamente pequena e provavelmente burra. não, burra não. mas pequena. olhou para o desenho do vulcão e escreveu num palito de sorvete que a terra era azul, o doce laranja e a solidão, grená.

maria 11:35 PM 0 vociferando estavam

janeiro 23, 2008

poeminha caipira em Tomar

meu pai dizia
que era caipira
que a escola
na aldeia
era cheia
de canários
que entravam
nas salas de aula,

que piavam álgebra,
história
e piavam também o francês

ele jura que viu
-fim do período
crianças socando
os livros
e alfarrábios
nas sacolas-

o passarinho
indo embora
se despediu
piando pomposo

''arrevoá!''

maria 12:21 PM 0 vociferando estavam

janeiro 22, 2008

a travessia

viajava pelas ruas
fofas e pela
grama compacta
seca
e moribunda

não queria ler
as letras pesadas
das placas,
inalou-as pela boca
mesmo assim
com o perfume
enjoativo
de árvores sem nome
e tudo era
uma coisa só.

os cães
eram velozes
sob o sol
ela não prestava
atenção
aos carros
que poderiam
atropelá-la

não enxergava mais
que a música pálida
dos aparelhos eletrônicos
desligados
e exaustos

do chão surgiam
estátuas, que não
se importavam
com a paisagem
nem com a chuva
do dia seguinte

a tempestade
que desejava
era pra encher
todos os rios
ligados entre si
em um raio
de três horas
a nado

com seu pai
na sacola plástica
cheia d'água
entre os dedos
amanda e suas
pernas tremiam
e as ruas sumiam
na distância dos olhos

ajoelhou-se
porque parecia
solene se ajoelhar,
beijou o plástico
por não poder
beijar o pai,

libertou finalmente
o peixe-
antes da hora-
nas águas,
sem tempo
de dizer
adeus
atrapalhada
só pôde
dizer
pai, nade
te encontro
depois




(postando umas coisas do ano passado novamente. perdedoras de concurso. a escritorinha de blog se resigna.)

maria 1:05 PM 2 vociferando estavam

irmã

amanda segura os dedos longos
da irmã

o tempo se tornou
um girassol
estrangulado pelos dias
que giram
(ou uma margarida
doente na lapela
da jaqueta)

a grama e o asfalto
no escuro são
muito parecidos,
irmãzinha:

acho que abri a noite
na página errada




(postando novamente poemas perdedores de concurso literário e me conformando em ser uma escritorinha de blog.)

maria 1:05 PM 0 vociferando estavam

amanda e a fonte

os dias têm sido
leves, cansados
amortecidos

com céu sonolento
e um sol
que não aquece

--

amanda era um poema
curto, de pernas grossas
e a fonte áspera

a água corria
queria correr
amanda esperava
segurou um pouco de água, que escorreu
das mãos
a pequena poça
no chão
secou

"morta, acabada

virou outra coisa."

e os olhos de amanda
cheios da água da fonte
e as mãos de amanda
cobertas de feridas abertas

que ninguém via




(postando novamente textos e poemas perdedores de concurso.)

maria 1:04 PM 0 vociferando estavam

Vem com tuas Pedras (Cidade dos Cães)

Pt. I

Seu corpo se encaixava no sulco da terra, o peito oscilava num ritmo confortável. O vento, em outro.
Nos encarávamos, ele dormia, meus olhos coçavam. A cidade inteira estava de acordo com a suspensão da chuva, com a música das aves nos parques suntuosos e com os assaltos diários.
Só porque eu havia perdido o trem para a serra.
Suas narinas expeliam o mesmo ar suado da tarde. Hoje já era passado há vários anos de verão; respirávamos juntos.

Pt. II

Havia se machucado -e ainda estava claro, o cão ainda repousava na terra, ainda era de tarde e eu ainda acreditava que conseguiria embarcar no próximo trem- e não havia nada que eu pudesse fazer. Por não poder tocá-lo, pelo receio que encobria meu nojo. Procurou meu olhar pela primeira vez, quem me feriu?, retribuí sua súplica encarando os trilhos e também o rosto tombado na janela do próximo trem.
Insistiu ainda, mas eu desconhecia seus códigos nobres, e andava sobre duas pernas de um lugar ao outro me ocupando da tarefa elevadíssima de atribuir sentidos a acontecimentos coincidentes sem porcaria de relação nenhuma entre si. Éramos estranhos um ao outro novamente, e ele, que ainda não havia se levantado, aproximou o nariz do acúmulo de sangue sobre o pêlo marrom. Seguimos- os viajantes- em direção a destinos paralelos, eu com os olhos e ele mancando de uma pata traseira.
A hora entrou morna e sem anúncios, falas arrastadas de homens começaram a se fazer ouvir, primeiro de longe.

Anoiteceu: há marcas no asfalto, mas não as vi.
Os cães da cidade trotam certeiros, eu os sigo; me conduzem em círculos que não compreendo unicamente por não ser um cão. As luzes da estação foram acesas, o trem não passou. Levanto-me do chão e perco a rua principal na minha certeza de encontrá-la.
Dormem todos.


maria 1:02 PM 0 vociferando estavam

Minha Mãe e o Sonho

"Meus pés congelam", tua voz me provoca dores agudas na fronte, boa mãe. Estás para mim como a última árvore após o incêndio, e o mundo tosse seus últimos momentos, me explica o sorriso minha velha, como é possível? Empurro seu ombro um pouco, esperava que me dissesse se está louca, ou morta; o que há de tão majestoso no horizonte fora a montanha com a última árvore? Se é deus que ela vê, nada me relata, e começo a fechar os pulsos e os olhos numa agonia de morte.

De olhos cerrados posso constatar que ela respira, mínguas de fogo ainda crepitam ao longe, o vento desloca a fumaça. Acabou, abandonada ao nada mais que se fazer ao lado de minha mãe enlouquecida, os corpos de meus amigos mais queridos tão silentes e despedaçados à nossa volta como um tapete de rendição. A guerra de armas intactas e disparos divinos ainda estoura em meus órgãos vitais. Chuva, grito em mente, a última de todas. A tempestade aumenta rapidamente e imagino toda a terra inundada e inválida como se fosse um recomeço, uma segunda chance de um criador supremo infinito e toda a ficção reconfortante. As nuvens se chocam e detonam clarões sobre o solo devastado, um dos raios ilumina o rosto de minha mãe.
A última vez que a vi, e estava tranqüila, e havia na sua boca uma expressão de prazer. Ela realmente havia perdido a sanidade. Os trovões aumentavam em número e volume, eu tinha certeza de que ficaríamos surdas para o resto do tempo que nos restasse.

Junto de meu corpo eletrocutado, minha mãe inclinou as feições num sorriso terno do olhar, como se me oferecesse um último beijo na testa. Caminhou vagarosamente para longe de mim como se soubesse exatamente para onde deveria ir, e mais uma vez lançou ao meu cadáver o olhar materno e doce, boa noite minha filha, boa noite.


(postando novamente uns textos perdedores de concurso)

maria 1:00 PM 0 vociferando estavam

Meu Irmão e a Carta

Começo esta exposição do momento em que eu estava como que dentro de um sonho, e me cabia a tarefa auto prescrita de impedir que meu irmão terminasse de quebrar o selo do envelope com seu nome e a minha caligrafia gravados na face anterior. Eu corria em sua direção há horas, cega pelo suor a escorrer olhos adentro e certa de que poderia transpor a falta de voz própria dos sonhos e repreendê-lo a tempo de deixá-lo suficientemente confuso para que eu pudesse arrancar-lhe a carta das mãos. Aquelas horas duravam exatamente os gestos trêmulos de meu velho irmão-quem me escuta reconhece, a história é vera- que já antecipava um acontecimento horroroso do qual não tivera tempo ou meios de me salvar. O leitor nunca poderá precisar de forma digna a necessidade monstruosa que meu irmão tinha de resgatar as almas de quem quer que fosse, por bem ou por enfadonha insistência.
Quando ele finalmente tinha o documento esticado sobre a escrivaninha foi que senti um solavanco digno de acidente ferroviário e pude então parar de correr. As imagens à minha volta retornavam aos movimentos normais de R.E.M. e assim senti que poderia estar numa motion picture moderníssima cheia de efeitos recém-inventados como chuviscos de interferência e mosquitos pousados na tela de projeção. Não foi difícil reconhecer minha mãe, vestindo os trapos usuais e debochando elegantemente de histórias antigas e inválidas sobre a desonestidade de banqueiros no interior do estado.

Meu pai, a seu lado, franzia a testa e estava de pé como um retrato, e me pareceu que ele era de fato um retrato engravatado de relógio de bolso e não mais meu pai.
Meu irmão, agora representado em uma escala enorme que fazia de mim um miserável rato, balia comigo por entre nuvens de fumaça grossa, que coisa terrível, terrível de se dizer, Maria, certamente odiosa! E eu nã-não, sabia que ia entender mal, deixe-me explicar, e ele não atentava para a minha presença talvez pelo tamanho que havia eu adquirido ou porque a minha garganta não vibrava às tentativas de gritar.
Chorei fundo, dolorido, senti brônquios se partirem em meus pulmões e chorei mais ainda. E como havia acontecido três segundos antes, meus olhos nada prestavam com toda aquela água; meu pai se afastava de costas (uma figura de terno escuro se afastava, aparentemente de costas) e o resto da cena era uma fotografia borrada.
Resignada, desisti do que tentava fazer -a ação exata me foge à memória- e estanquei as lágrimas na camiseta. Agora eu ditava da campa meus desejos finais. Lembrei-me de que nada poderia ter sido evitado se não tivesse me arrastado pelo corredor até aquele pobre homem e zumbido em seu ouvido; tens carta, vá ler, antes que a chuva deste pequeno inverno ensope as palavras e as torne ilegíveis.
Meu irmão soluçava e guinchava sentado à sua escrivaninha.


(postando novamente uns textos perdedores de concurso)


maria 1:00 PM 0 vociferando estavam



ao rés da fala